Gula

Os olhos brilhavam. Gostava de vê-los assim, debatendo-se, lutando sem esperanças. Para ele, não era nada demais. Era como as coisas deveriam ser. Alguns morrem, outros vivem e a maioria segue sem saber como, nem por quê. Dava-lhe um prazer quase sobrenatural. Deslizava, lentamente, a lâmina da nuca ao cóccix. Em alguns momentos pressionava mais. Algo bem sensitivo. Agia como quem tivesse um plano e estava executando sua principal etapa. Reconhecia sua própria insanidade e, por isso, lidava muito bem com seus desejos. Liberava-os. Permitia-se sentir alegria na tristeza, sem moral ou juízo. Filmava tudo. Gostava de rever cada detalhe. As pupilas dilatadas, os olhos arregalados, as lágrimas que corriam. “Apressadas”.

O modus operandi não mudava. Conhecia alguém. Alguém que, pela sua insana intuição, tinha a necessidade de morrer. Alguém que carregava a famosa tristeza no olhar. Que começava tudo pensando em terminar – não pelo prazer da realização, mas pela agonia de ter de fazê-lo. Que passava os dias se arrastando, sem querer estar vivo. Não precisava de muitas pistas. Era só olhar e pronto. Destino traçado. Um destino, aliás, muito bem planejado e executado. Seduzia-os pela companhia, pela amizade, pelo sorriso no rosto. E cumpria sua missão. Ninguém daria falta. E se desse, os esforços seriam mínimos. Qualquer explicação bastava. Bebeu demais e sumiu por aí. Suicidou-se. Morreu em um assalto. Etc.

Eram muitas as vítimas, centenas. Às vezes, deixava que se amontoassem, numa espécie confortável de assento. E sentava, por horas, apenas para sentir o prazer sendo injetado em cada célula do seu corpo. Depois as queimava, as triturava, as espalhava por aí. Enfim, livrava-se daquelas carcaças. Não por que traziam péssimas lembranças, pelo contrário. Gostava de saber que a liberdade alcançou almas tão sofridas. Jogava-as fora, pois fediam.

Não havia motivos para que agisse assim, não pela psicologia. Não fora abusado. Nunca amou alguém demais a ponto de sofrer por sua morte. Seus pais sempre foram presentes. Teve ótimos amigos. Cresceu em um bairro rico. Nenhum parente tinha antecedentes criminais. Namorou muito. Era filho único. Teve bons exemplos durante toda a sua vida. Mas ele era assim e tinha a sensação de que todos eram, bastava dá-lhes a oportunidade.

Já estava velho e, a essa altura, era fácil fazer amigos. Amigos solitários e cansados. Amigas novas, com saias curtas. Solitários. Todos que matava eram assim.Entrou num bar. Era madrugada. Alguns ainda insistiam em ficar ali, bebendo eternamente. Anestesiando-se.

– Olá. – tão amigável quanto uma menina de 5 anos.

Dependendo dos interesses da vítima, contava-lhe histórias de sua infância, história de amores mal-acabados, histórias inventadas, lindas vitórias em guerra. Havia um catálogo de assuntos. Às vezes, esperava que dias se passassem, até meses, para que – num dia desses comuns que você acorda atarefado e irritado, esquecendo que tragédias acontecessem todos os dias – ele as convidasse para sua casa e, lá mesmo, fizesse todo o trabalho. Espancava, com um sorriso estampado em sua face. Quebrava cada osso do rosto, fazia desenhos aleatórios com a lâmina. Se fosse mulher e a achasse muito bonita, estuprava-as e depois lhes dava um beijo na testa.

E, por fim, dizia sempre a mesma frase. Ele a ouvira de seu avô, que tinha a mania de repetir máximas e provérbios aleatoriamente, como se o mundo precisasse, urgentemente, de cada um deles. Inclinava-se, observava o corpo desalmado cautelosamente e dizia, num sussurro ao pé do ouvido: “Todo desejo é um desejo de morte”.

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