Inexistir: arte ou efeito de não existir (Parte I)

7h da manhã. Como sempre, acordei atrasada para aula. Fiquei lá, brincando de existir. Rindo só pra compartilhar. Fui trabalhar, ainda pensando no mistério que é a família ser a causa de todas as minhas dores de cabeça. Tanto faz. Acho que existe uma fase na vida em que tudo te irrita. Seu trabalho, seus estudos, sua família, seus amigos, seu tempo livre. Tudo. Sentia como se eu tivesse que, a todo tempo, suprimir qualquer coisa que eu pensasse, em razão da existência alheia. Foi aí que comecei a existir menos. Demorou um tempo para eu perceber que estava ficando opaca. A cada sapo que engolia, diminuía a porcentagem. Não sei como isso começou, porque só fui perceber essa merda, quando já estava quase sumindo.

Parece que as pessoas, sabendo que te inibem, insistem em falar merda, da forma mais brutal possível - principalmente, se ela exerce alguma autoridade sobre você. Costumava contestar, antigamente. Talvez, por isso, sempre fui mais metálica. Fui perdendo a cor. E isso não significa tornar-me cinza, para os desavisados. Eu fui, simplesmente, sumindo. O pior de tudo - talvez, o mais intrigante - é que as pessoas nem se quer notavam que algo sobrenatural estava acontecendo.

Num sábado qualquer, havia marcado de ir almoçar com uma amiga, parceira de existência. Conversa vai, conversa vem. "Sua mãe seu irmão aquele velho amigo seu ex-namorado bla bla bla". E, numa dessas risadas que a gente dá, de jogar a cabeça pra trás e ainda ficar uns minutos pensando no que foi dito, com um sorriso no rosto; percebi que podia ver o copo através da minha mão. Forcei um pouco a vista. Minha amiga nem percebeu. Fiquei olhando por algum tempo. Certamente que me apavorei, mas ninguém notou. Ninguém nota quando se quer ser notado. Eu meio que já me acostumei.

No final de dia - que era sempre do mesmo jeito -, quando chegava em casa, via aquela confusão. Todo mundo falando alto, tudo desarrumado, meu pai bêbado no sofá e minha mãe gritando horrores, sempre, com aquele maldito cigarro na mão. Meu irmão, pequeno, só fazia dormir (As crianças sempre serão mais sábias do que nós - se, é claro, delas não abusarmos). Poderia incluir muitos eticeteras nessa descrição. O que me restava fazer era lavar os pratos, cada vez que sujavam. Varrer cada guimba jogada no chão. Limpar a bebida derramada, seca que grudava o pé. Trocar as fraldas da criança, dar beijo, ler conto de fada. Agora sei como isso tudo só fazia diminuir a opacidade.

Não quero ser melancólica, mas começo a achar que tudo isso é, afinal, triste. A supressão do meu id, ultrapassou o estado do superego, da lei, da matéria. Eu existo como alma, como ser pensante, mas que relação agora tenho, com o mundo onde vivo? Não pertenço a este lugar, nada me liga mais com esse povo, com essa cultura. Não sei se terei a capacidade de morrer (ou a oportunidade), mas gostaria de que fosse logo. O mundo que vem depois deve ter mais a ver com essa minha ausência de tudo.

Lembro que, no início, depois do momento "Ai, meu Deus, e agora?" - símbolo da nossa fraqueza -, comecei a pensar que poderia me ser útil, toda essa inexistência. Poderia rir quando meus professores fizessem alguma coisa estúpida; ou quando alguém estivesse com uma casca de feijão no dente. Comia cheddar com doritos sempre que quisesse. Não há crime sem provas. Ficava na praia de dia, de noite, sempre que quisesse. Claro que vi coisas que preferia não ter visto. Fui a lugares que, existindo, jamais iria. Subi morro, vi gente boa morrer. Vi presidente não representar a nação. Vi a imaginação vendida, a arte descompromissada. Vi o mundo acabar, sem poder dizer a ninguém. Que clichê! Fazer o quê?

Depois de me acomodar com a minha impotência diante da situação, comecei a ser adepta do destino e a pensar que tinha que ser assim, mesmo. A invisibilidade, apesar de democrática, é capacidade de poucos. Hoje, me peguei pensando se existem (ou inexistem) outros como eu. Talvez. Será? Acho que sim, não me acho tão especial para ser única. Tantos oprimidos, tantos invisíveis. Dá no mesmo.

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3 Comentário(s)

  1. ei isa,
    poxa vida adorei muito o texto, nesse tempo que fiquei de fora do cronópio seu estilo se desenvolveu muito. curti.
    faria alguns cortezinhos, mas vc me conheçe. menos é mais.
    vou tentar aparecer lá na terça. fiquei com saudade.
    parabéns pelo texto.

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  2. ei, mainá!
    aparece e me dá essas sugestões que falou :))

    estava há um bom tempo sem escrever um conto...

    saudades dos "da mainá" tb :*

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  3. Não corta nada, está lindo demais. Os cortes acabam ferindo sua criação.


    Abraço

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